sábado, 5 de setembro de 2009

O campeão de Arckthee

A multidão estava gritando tão alto que somente Harfer ouviu Ecktor falar. A princesa chorava e isso quase levou o campeão ao desamparo completo. Era uma falha e ela ainda se importava com ele. A maior monarca do mundo se importava com o ferimento em seu braço e em seu orgulho, ele sabia disso pelo modo como ela o olhava. Mistura de orgulho e pena. Ela a viu tentar esticar a mão em sua direção, porém Leighann se conteve e tentou não estragar a cerimônia. O príncipe estava feliz, pois Ashlen iria arrancar a cabeça do outro homem e não tinha o menor medo de pisar na arena mesmo sabendo que seria desnecessário. Harfer nunca ficou tão emocionado ao perder uma luta, iria mostrar ao maldito Ecktor o motivo de ser o campeão de Antharos.



O príncipe levantou a mão e todos se calaram, sérios. Ninguém esperava que o futuro rei impedisse a comemoração. Ele encarou Ecktor e disse.

_ Parabéns. Vá e faça o povo gritar mais alto. _ O príncipe estava tão régio trajando o equipamento de guerra real que seu pedido à Ashlen parecia uma ordem_ Lutem homens, lutem bem.

_ Espada boa rapaz, armadura melhor ainda, mas nem um exército te protegeria de mim. Vou arrancar esse seu sorriso idiota dente por dente. _ As ultimas palavras escaparam do campeão como um grunhido ferino.

_ Vai lutar bem e eu vou vencer. Não tenha esperanças, mas não torne isso fácil Ashlen._ O sorriso de Ecktor parecia prestes a rasgar o rosto. Os dentes perfeitamente brancos e alinhados eram o mais estranho sobre ele.

Ashlen tirou a espada que tinha guardado na bainha. A intensidade da atenção do público causava uma ansiedade estranha. O silêncio era pesado, tão intenso que o único som além do dos movimentos dos dois guerreiros era o som da respiração das pessoas, quase se podia ouvir seus corações pulsando desesperados. Ashlen ensaiou um movimento com a espada e um suspiro assustado da princesa foi contido. Ela queria que tudo parasse.

Ecktor deu um passo para frente brandindo a espada como se fosse uma criança fingindo ser herói. O sorriso ainda persistia quando Ashlen atacou. O golpe foi aparado e uma gargalhada foi a replica ao golpe. Logo Ashlen atacou de novo e de novo. Novamente o desafiante aparou e sorriu. Quanto mais forte Ashlen acertava, quanto mais era necessário recuar para aparar os golpes mais ele sorria. As pessoas expressavam surpresa, alguns raiva outros paixão, mas no total ainda estava silencioso. Ashlen urrava de esforço, as faíscas pareciam não ter fim e as espadas vibravam prestes a rachar. No fim o homem da armadura dourada ria e pulava animado.

Ashlen percebeu uma falha na defesa do adversário lá pelo vigésimo golpe, os dois já estavam quase ao alcance do público quando ele tentou um ataque mais rápido e mais forte aproveitando um deslize do adversário. Deslize falso, isso Ashlen não sabia e só percebeu quando o homem girou parando as costas dele e fez um corte vertical. O som era de couro sendo cortado tão endurecida era a pele dele, o sangue jorrou quase sem som, o corte foi superficial demais. O que Ashlen agradeceu muito, pois a luta poderia ter acabado se o oponente tivesse sido um segundo mais rápido. Ashlen virou rapidamente o corpo. O sangue manchava o chão, a princesa soluçava, a multidão urrava e o príncipe tremia.

Ashlen já não sentia a dor, apenas raiva por ter sido enganado. Nenhum homem até o momento tinha sido capaz de aparar seus golpes com essa facilidade a ponto de preparar uma armadilha dessas. Bastardo rápido esse. Avançaram juntos as espadas causaram mais faíscas, o som de aço aranhando aço já tinha se tornado um incomodo a maioria dos espectadores. O esforço fez as costas de Ashlen sangrarem mais ainda enquanto o som da pele sendo rasgada levava aos rostos uma expressão de horror. A espada do campeão foi atirada a três passos junto com mais um pedaço do seu orgulho. A espada do adversário também foi ao chão, atirada para a direita. Logo uma mão apertava a garganta de Ashlen o tirando do chão enquanto o outro braço segurava o pulso direito tão forte que o estalar molhado dos ossos era alto e repugnante.

O rosto de Ashlen estava vermelho, as veias saltando, os olhos esbugalhados. A garganta não deixava passar ar nenhum. A traquéia rachava aos poucos sob o aperto das luvas douradas. No momento o silêncio mortal era quebrado apenas pelas risadas do desafiante e os soluços da princesa. Enquanto ela chorava, Ecktor ria se deliciando com a situação do inimigo que parecia prestes a explodir.

Os sons estavam distorcidos, a luz começava a fugir do mundo assim como o ar de seus pulmões. Ashlen começava a pensar que perder de vez a consciência seria melhor. O sabor do próprio sangue infestava sua boca, o chão parecia fugir e as coisas aconteciam em câmera lenta. Não ouvia mais a voz do seu príncipe. Na verdade no meio da confusão que os sons viraram ele só conseguia distinguir dois, o riso divertido de Ecktor que em outras circunstancias seria o de um amigo intimo rindo de uma piada velha e nostálgica e a prece da princesa. “Não deixe meu príncipe lutar, por favor, não deixe.” Ashlen sentia nojo do som que Ecktor fazia mesmo tendo ele mesmo feito esse som enquanto matava homens das fileiras inimigas. A prece da princesa o fez lembrar-se que tinha uma chance mesmo não podendo mais ver o rosto do inimigo.

Chutou com a perna esquerda, sem efeito. Acabou prendendo o pé na cintura do homem. O riso aumentou de volume. Era tudo que podia ouvir. Não conseguia nem mesmo ouvir o seu pescoço estalar nas mãos do guerreiro sádico. Empurrou o pé esquerdo para baixo e deu uma joelhada no rosto do homem com o joelho protegido por malha e joelheira. Ecktor nem percebeu o golpe, muito menos tentou evitá-lo. Somente recuou alguns passos enquanto a multidão parecia em êxtase, seu maxilar estava deslocado e Ashlen cambaleava recuperando os sentidos.

A princesa gritou de alegria, para ela seu príncipe estava salvo naquele momento. O príncipe estava tenso, muito tenso e indeciso queria lutar e ganhar. Mas seria capas de vencer um guerreiro mais forte que Ashlen fora de um torneio, num duelo de arena? Talvez fosse impossível vencer esse homem assim. Sua esperança era torcer por Ashlen.

O homem vestido de dourado pôs o queixo no lugar com um estalo molhado parecido com os que se ouvem nos açougues. Muita gente se contorceu ao ouvir esse som vindo de um ser humano. Ecktor ria, mas agora cheio de ódio. Ashlen pegava sua espada no chão ainda sonso.

_Maldito, devia ter esperado e apagado. Agora vai doer Ashlen. Vai doer muito.

Nesse momento eles riram juntos pela ameaça, ambos sabiam que seria levada a cabo. Os dois sabiam que iria doer mais do que Ashlen queria. Ecktor pegou a sua espada e fincou-a no chão alguns passos distante de onde estava e fez sinal para a arquibancada. A torcida estava quase toda a favor dele agora.

O ar parecia vibrar o som ficava cada vez mais alto e bagunçado. Parecia um rugido interminável. Harfer numa maca com o braço enfaixado e entalado, porém ainda sangrando muito mais do que podia, fazia sinais para Ashlen, o guerreiro de dourado estava sempre um passo a frente. Estaria sempre um passo a frente de Ashlen, que ainda não podia ver direito, mas estava se aproveitando do tempo dado por Ecktor para se recuperar.

Ashlen tentou aproveitar mais ainda o momento com uma investida surpresa. Ecktor percebeu, rolou no chão e pegou a espada quebrada de Harfer no chão. Bloqueio perfeito, porém a lamina cedeu mais ainda. A lamina quente de Ashlen fez um corte superficial no pescoço do inimigo. O sangue encharcou o cabelo e sujou ainda mais a armadura. Ironicamente manchando a rosa branca de vermelho. O silêncio que a torcida fez até poder avaliar o dano foi demais para a princesa, ela viu o sangue escapando do ferimento no pescoço por entre os dedos enluvados do guerreiro e caiu nos braços do príncipe em um pranto descontrolado. Essa selvageria era desnecessária. Deveria ser uma festa com dança e música. O espetáculo de sangue não era o que ela queria, mesmo que o sangue tenha dado a ela tudo que tinha e teria.

A multidão voltou a fazer barulho quando Ecktor jogou o cabelo sujo de sangue para trás num gesto quase esnobe. Ashlen xingou baixo, mas mesmo que tivesse gritado a plenos pulmões não teria ouvido a própria voz. Até a princesa levantou para olhar do meio do choro tamanho o barulho que as pessoas faziam. Ela sentia a armadura do príncipe vibrar entre seus braços ressonando com a torcida inflamada.

Ecktor avançou e Ashlen recuou até que ele pudesse estar de novo com sua espada na mão. Os dois se olharam, trocaram um comprimento cordial e então Ashlen avançou como um louco e saltou a três passos de Ecktor, iria cortá-lo ao meio se acertasse. Ecktor correu, lançou a espada quebrada de Harfer na direção de Ashlen, acertou em cheio. A lamina fez uma chuva vermelha se misturar a areia fina da arena. Ela não atingiu nenhum osso pelo som, apenas os músculos de Ashlen que apesar da dor não se moveu um centímetro. Fez o ataque como deveria. A espada de Ecktor estava no caminho, porém não houve resistência. Ecktor se jogou de costas no chão aproveitando a corrida para escorregar por baixo de Ashlen. Seu próximo movimento calou o público. A espada atravessa o peito de Ashlen enquanto com a mão esquerda ele aproximava o inimigo desesperado, puxando-o pelo braço da espada. A luta havia acabado, antes de Ashlen desistir eles ainda dançaram despejando sangue no chão e urros de dor no ar.

Estrelas. Até onde os olhos podem alcançar apenas estrelas brilhando e do meio delas surge o homem que vestia o manto marrom agora vestido em cinza e verde e sem capuz. O rosto magro e as orelhas pontudas, os olhos escuros, porém gentis enquanto o sorriso animado e traiçoeiro é o verdadeiro semblante.

_ Venho pedir um favor.

_ Todos podem fazer desejos as estrelas. – A voz parecia vir de todos os lados.

_ Quero que uma criança tenha um augúrio especial. Quero sua benção maior para ela, quero sua marca nela. Essa criança especial nascerá de uma mulher dos homens. Dou a você um vislumbre do destino se me ajudar. – O silêncio durou pouco, mas poderia ter durado a eternidade, pois a resposta serie a mesma.

_ Sua criança será. Agora me de o destino que prometeu. – E o homem sorriu mais largo.

O deus dos caminhos, da sorte e do tempo pode ver até onde nenhum outro pôde. Nem o homem que lhe deu isso poderia olhar tão longe. Não houve mais deus do tempo, da sorte ou do caminho. Depois do choque com o destino havia apenas uma casca esperando para ser quebrada não houve mais palavras entre as estrelas, pois seu deus jamais se moveria de novo.

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